segunda-feira, 17 de maio de 2010

«História do Ateísmo» de Luís F. Rodrigues

História do Ateísmo em Portugal
de Luís F. Rodrigues
Editora Guerra & Paz
2010
383 págs.
22 euros


Notas sobre o livro «História do Ateísmo»


Curiosidade intelectual pura. Curiosidade pura foi o que me levou a embrenhar-me na leitura da “História do Ateísmo em Portugal – da fundação ao final do Estado Novo”, de Luís Ferreira Rodrigues, recentemente editado (Abril de 2010) por “Guerra e Paz”.
Senti-me de algum modo sintonizada com o autor quando constatei que ele próprio terá decidido encetar e trazer a público o estudo que realizou movido por “simples curiosidade intelectual”

À guisa de conclusão talvez apressada e redutora, poderei dizer que nos é apresentada a história de uma frustração ao longo de séculos, só recentemente minimizada.

Porque redutora, esta conclusão será também injusta. O trabalho de pesquisa e de análise levado a cabo pelo Autor merece mais do que isso.
Merece que se lhe teça elogio por nos avivar o conhecimento e/ou a memória de algo que nos terá passado ao lado: a evolução do pensamento filosófico e político, e das suas repercussões relacionais (de liberdade, económicas, sociais) de que somos beneficiários. E também porque o que se propôs foi a apresentação da “história de uma tendência intelectual lusitana que se inclinou para a refutação da concepção do mundo enquanto produto proveniente de deus” em ordem a responder às interrogações: “como é que uma visão ateia do mundo se desenvolveu e fez sentir em Portugal? O que a impediu de se desenvolver tanto como noutros países europeus?”

Tem o autor, desde logo, o mérito de nos introduzir na matéria pelas conceitualizações que faz sobre o fenómeno religioso, as religiões (em particular da religião católica porque imperante em Portugal e os desvios que lhe são subjacentes – heresias), e o seu contrário (ateísmo), bem como das suas gradações (com relevo para o anticrelicalismo, o deísmo e agnosticismo).

Se não traio o autor, no que toca à religião católica é dado particular relevo à visão de um Deus Revelado, não apenas criador como também julgador e redentor mas, sempre, interventor (providencial) nos planos pessoal, social e político, do qual (e dos textos revelados) é exclusiva intérprete e guardiã a Igreja sedeada em Roma, deste modo arquitecta de normativo teológico e definidora de ética(s) comportamental(is).

À luz desta enunciação, e como seu corolário, derivará que o poder temporal deva ser considerado uma emanação de Deus, por expressa vontade ou mero consentimento seus. Ao povo crente cumpre o dever de obediência e serviço pacífico, pelo menos enquanto o exercício do poder não viole o cerne do mandato divino conferido.
Face a este providencialismo foi assumida por parte dos poderes temporal e espiritual portugueses, e por essa via plasmado na comunidade crente, a convicção de um desígnio divino relativamente a Portugal e ao seu povo. Desígnio que se terá substanciado na independentização do Reino (Alexandre Herculano o veio a desmitificar veementemente), na gesta dos descobrimentos, e em tempos de angústia num recorrente messianismo. Este plasmar terá sido tão profundo que se terá mantido explícito ou larvar até próximo dos nossos dias influenciando personalidades ilustres, como Luís de Camões, o Padre António Vieira com o seu Quinto Império, levando mesmo a comungar dele alguns historiadores portugueses não muito distantes.

É evidente que o autor repudia esta superestrutura, mas como objectivamente ela é incontornável, a ela se reporta sistematicamente na análise a que procede dos diversos sucessos da vida nacional tidos por relevantes ao longo da sua multicentenária existência.

Envolvido, ao que me parece, na corrente materialista interpretativa da história, a sua visão de tais sucessos, mesmo os mais carismáticos do ponto de vista de força anímica (para não dizer transcendental), é, a meu ver e por força da sua recorrência, por vezes entediante: a superestrutura acaba sempre no escabelo do réu e por decisão prévia (como nos tribunais da Inquisição?) é igualmente sempre declarada culpada. Corrijo-me: excepcionalmente a culpa recai sobre “desvios” extremistas na actuação de alguns bem-intencionados responsáveis pela condução da coisa pública ou pela sua incorrecta avaliação do sentir profundo do próprio povo.

Esperava um maior aprofundamento de análise, susceptível de me trazer novidades.

Não aconteceu. É muito provável que do ponto de vista do espartilho modelar adoptado elas não fossem suficientemente significativas face ao escopo visado!...

O reparo feito não colhe, contudo, quando o autor revisita o século XIX e as duas primeiras décadas do XX.

O seu estudo ganha vivacidade e desperta a nossa atenção quando nos apresenta, entre outros, August Comte, Ludwig Feuerbach, Karl Marx, Pierre-Josehp Proudhon, Friedrich Nietzsche, Charles Darwin e Sigmund Freud, nos faz participar de sínteses do seu pensamento e nos introduz na influência e acolhimento que, directa ou indirectamente, as suas teses tiveram em Portugal, sobretudo nos meios intelectuais do país e também no seio de sectores da burguesia urbana ~ Lisboa e Porto – e do seu nascente proletariado industrial.

Em Portugal ganham vulto os nomes e o pensamento de Antero de Quental e demais participantes e interventores nas abortadas “Conferências do Casino” de entre os quais são de destacar o próprio Antero, Eça de Queiroz, Adolfo Coelho e Salomão Saragga), de Teófilo Braga, Manuel Emídio Garcia, Eurico Seabra, Basilio Teles, Júlio de Matos, Miguel Bombarda, Bernardino Machado, Forjaz de Sampaio, Heliodoro Salgado, António José de Almeida, Afonso Costa.

No fervilhar de ideias e de propostas de acção, as lojas maçónicas (agora abertas a quem partilhe da ideologia ateísta), a Carbonária, a “Associação do Registo Civil e do Livre Pensamento” e os periódicos como “A Lanterna” ganham evidência e protagonismo: o fim do regime monárquico e da sua associação com a religião católica (religião do Estado) é reclamado insistentemente, com apelo à violência se de outro modo se não operar.

Pela mão de Afonso Costa, a República decreta a lei da separação da Igreja do Estado, proclama a liberdade do culto (condicionando contudo o seu exercício), admite o divórcio como meio de pôr termo à sociedade conjugal, nacionaliza (confisca) os bens da Igreja, expulsa do país a Companhia de Jesus, impõe a obrigatoriedade do Registo Civil (substituindo-o aos registos paroquiais), reforma a Universidade, declara obrigatório o ensino primário, que reformula.

Contudo, a instabilidade política que dominou a 1ª República e a participação de Portugal na Guerra de 1914-1918 ter-se-ão revelado objectivamente nocivas à consecução do ideário republicano, com nefastas consequências no que respeita à pretendida erradicação da crença no transcendente.

E por isso, após o consulado de Sidónio Pais em Portugal, o Autor conduz-nos ao prenúncio de instauração na Europa de regimes ditatoriais, os quais, à excepção do sovietismo, não terão encontrado oposição por parte da Igreja Católica, ela própria organizada ditatorialmente face aos poderes atribuídos à pessoa do Papa (nos casos da Espanha e de Portugal terá tido até o seu “placet”).

Mas não deixa de salientar que entretanto terão surgido visões filosóficas idealistas do ateísmo na esteira de Immanuel Kant (Bertrand Russell, Henri Bergson, entre outros). Em Portugal, o transcendente revive especialmente em Teixeira de Pascoais, Leonardo Coimbra, José Marinho e Sant’Anna Dionísio, e no misticismo de Fernando Pessoa, encontrando a oposição filosófica de, entre outros, António Sérgio, Raúl Proença, Fidelino Figueiredo, Vieira de Almeida, Edmundo Curvelo e Abel Salazar, de que nos deixa sínteses de incontestável interesse.

O autor, após aludir à encíclica “Spe Salvi de Bento XVI”, termina o seu estudo formulando, embora expressando algum cepticismo, o voto: “Seja qual for a escolha, esperemos apenas que o diálogo entre crentes e não crentes se enriqueça. Este facto trará, como externalidade positiva, uma maior maturidade e qualificação intelectual da sociedade portuguesa para enfrentar e resolver problemas que transcendem em muito a limitada esfera das problemáticas religiosas.”

Termino eu também estas notas com a indicação de que ele merece a leitura de quantos sejam tomados da curiosidade intelectual que esteve nos propósitos do autor e de mim próprio.

No concreto e comesinhamente, há, no geral, que aceitar a permanência de uma já vetusta contradição portuguesa: país que se mantém profundamente imbuído de uma religiosidade de matriz católica (ainda que num sentido em que impera muito do tradicional) e simultaneamente é indiferente às proposições da hierarquia eclesiástica ou é, mesmo, anticlerical.

Para o mal, mas também para o bem, por influência da Igreja Católica Romana somos o país que fomos e que por essa via somos. Cabe-nos fazer o necessário para o que queiramos ser. Pequenos, periféricos, acantonados no extremo oeste da Europa, não olvidemos, porém, que a nossa acção colectiva estará sempre sujeita em todos os domínios, a condicionalismos que (hoje como ontem) nos superam.


Luísa Amaral

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