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À passagem de mais um aniversário sobre as acções militares levadas a cabo em 25 de Novembro de 1975, mantém-se no meu espírito alguma perplexidade sobre a posição que me parece ter sido adoptada pelo Partido Comunista Português (PCP), e que classifico de “incerta passividade”, quer no que directamente se relaciona com elas quer com o período que imediatamente o antecedeu.
Não parece sofrer qualquer dúvida que na sequência do 25 de Abril de 1974 o PCP era a única força política que se encontrava organizada, tinha uma consciência ideológica clara e um programa de actuação social e política coerente.
Algumas das metas fulcrais contidas no Programa do Movimento das Forças Armadas (MFA) coincidiam, pelo menos na aparência das palavras e dos propósitos anunciados, com as defendidas pelo PCP. E assim, aproveitando a euforia da súbita e radical mudança operada no horizonte político e social e apoiado pela militância dos seus filiados, não foi difícil ao PCP assumir uma indesmentível liderança no processo.
Sabendo exactamente o que pretendia, o PCP teve igualmente o mérito de saber utilizar os meios que, embora em muitos casos indirectamente, lhe possibilitaria alcançar os seus objectivos. E deste modo não teve grandes preocupações com o aparecimento dos muitos e variados grupos de uma extrema-esquerda inconsequente e socialmente deletéria. Deles, da divisão que entre si alimentavam, da agitação social que produziam e da consequente temerosa retracção de uma grande parte da sociedade, o PCP ia colhendo dividendos políticos.
Não foi sem surpresa que, em face de uma certa unanimidade gerada em torno do termo da prolongada guerra que o regime anterior mantinha na Guiné, em Angola e em Moçambique contra os movimentos armados independentistas e da imposição de uma estratégia em torno da independência a curto prazo de todos os territórios portugueses do ultramar desacompanhada da clarificação legal dos poderes do Governo, se verificasse em Junho de 1974 a demissão do dr. Adelino da Palma Carlos e a ascensão a Primeiro-Ministro do coronel Vasco Gonçalves.
Por arraste, na sequência da proximidade de Vasco Gonçalves com o PCP, da rápida politização das instituições militares e degradação da respectiva disciplina, bem como da credulidade e eventual inabilidade políticas do general Spínola e da sua “entourage” mais próxima, em Setembro seguinte, com a renúncia deste ao cargo de Presidente da República, o PCP viu coroados os esforços que na rua e nas unidades industriais e militares vinha desenvolvendo no sentido de dominar a condução da acção política a nível institucional.
O fracasso da incipiente e desorganizada “aventura” do 11 de Março de 1975 veio a constituir para o PCP o pretexto soberano para alargar à esfera da economia alguns dos seus princípios doutrinários mais caros: decididas que já haviam sido as independências dos diversos territórios portugueses em África (e cujas cerimónias oficiais se iriam realizar programadamente ao longo desse ano), foi rapidamente decretada a nacionalização dos principais sectores da actividade económica, tendo também lugar a ocupação não titulada de casas e terras, a “colectivização” das grandes propriedades agrícolas (promovida ou apoiada pelo PCP sem quaisquer embaraços por parte do poder político e do aparelho judicial) e a tomada da gestão por parte dos seus trabalhadores (e não só) de muitas das empresas que escaparam às nacionalizações (à qual a breve trecho, para sua sobrevivência, se teve que seguir o apoio estatal).
Assim, a breve trecho alguns dos grandes propósitos ideológicos do PCP vinham a ser alcançados através do domínio que aberta ou veladamente ele exercia nos principais meios de comunicação social, no controlo da actividade financeira e económica, e também no seio das estruturas militares e do poder político.
Mas o domínio que de facto exercia não era ainda suficiente. A aguerrida actividade de alguns grupos de extrema-esquerda, que ao PCP tinha sido muito útil e por isso tolerada e aproveitada, mostrava-se agora irredutível e antagónica ao exercício hegemónico por parte do PCP, pelo que nova frente de combate teve que ser aberta, apoiado pelos demais grupos que lhe estavam próximos.
Por outro lado, as “campanhas de esclarecimento político” empreendidas um pouco por todo o país não foram suficientemente controladas pelo PCP e não deram os frutos políticos esperados; a fidelidade do sentimento religioso de grande parte do povo português à igreja católica, sobretudo no norte do país, mantinha-se ainda em nível elevado; os partidos políticos com assento na Assembleia Constituinte tomavam consciência dos constrangimentos a que haviam sido remetidos (ou a que se haviam submetido); a bandeira do “desenvolvimento” agitada no Programa do MFA jazia por terra; possivelmente uma certa percepção de “kerenskisação” terá começado a instalar-se no espírito de alguns dos fautores do 24 de Abril que ainda tinham assento nas instituições político-revolucionárias.
Vasco Gonçalves acabou por cair. Aparentemente desamparado pelo PCP, mas suportado pelos grupos que lhe estavam próximos e com grande visibilidade com ele integravam a Frente de Unidade Revolucionária (FUR).
Pinheiro de Azevedo assumiu a chefia do VI Governo Provisório. Contestado na rua por massas populares instigadas e controladas pela FUR, não se intimidou. Chefias militares vitais foram substituídas, um esboço de disciplina militar começou a ressurgir a despeito de pontuais reacções em algumas unidades militares.
Uma primeira perplexidade me toma, não desfeita pelos diversos (alguns deles contraditórios) depoimentos das pessoas que desempenharam algum papel na cena político-militar em todo o processo, ou dele estiveram próximos, e que sucessivamente têm vindo a lume.
O PCP, doutrinado, infiltrado, experiente (por si e pelos seus congéneres em outros países), que até então tinha mantido o domínio da cena política portuguesa, não poderá ter-se alheado desta evolução da situação e deixado de fazer uma análise da mesma. A que atribuir, pois, a “timidez” que demonstrou na prevenção e na contenção de algo que objectivamente se apresentava tão profundamente perigoso para a sua hegemonia, e até desagregador das sinergias que até aí haviam caracterizado a sua actuação nos diversos campos em que se empenhara? A experiência, lucidez, agudeza de avaliação e empenhamento na luta do dr. Álvaro Cunhal não permitem se faça um branqueamento da atitude do PCP em toda esta fase preliminar.
O golpe militar (contragolpe na asserção dos seus protagonistas) do 25 de Novembro, de antemão preparado com cuidado mas não isento de riscos não totalmente controlados e não rodeado de tanto secretismo quanto se poderia julgar, teve lugar na sequência de um levantamento frontal dos paraquedistas de Tancos.
Nova perplexidade se me depara.
Desapossado do poder político, o PCP contenta-se com a declaração do major Melo Antunes da imprescindibilidade da sua participação na vida política portuguesa?
Ele, que tão bem se dera e crescera na clandestinidade, com objectivos que só ele podia com êxito prosseguir, porque aceita (e pactua) com uma situação que necessariamente o reconduzirá a uma posição que não deixará de ser de subalternidade, quando os meios que agora mantinha na cena política e na sociedade portuguesa eram bem superiores aos que em 1974 podia dispor e apesar disso o guindaram à posição a que ascendeu?
Ele, que conhecia bem o sucesso alcançado pela facção minoritária (bolchevista) na convulsão russa de 1917, a qual, a despeito disso, não deixou de travar uma guerra civil e obter a vitória contra os adversários internos que inclusivamente contavam com apoio exteriores, opta “motu próprio” por se remeter a uma posição defensiva?
Terá bastado aos dirigentes do PCP a perspectiva de na Constituição em gestação se vir a consagrar o “objectivo (de) assegurar a transição para o socialismo mediante a criação de condições para o exercício democrático do poder pelas classes trabalhadoras” e a irreversibilidade do “princípio da apropriação colectiva dos principais meios de produção e solos, bem como dos recursos naturais, e a eliminação dos monopólios e latifúndios” e “da participação das organizações populares de base no exercício do poder local”? Mas a este propósito poderá ignorar-se o sequestro dos deputados constituintes e do próprio VI Governo Provisório, em que a participação do PCP foi evidente?
Conhecidas como eram as estreitas ligação e dependência do PCP com relação ao PCUS e à “intelligentsia” da URSS, ocorre perguntar se aquela sua atitude terá sido tomada à revelia dos seus mentores e protectores.
A consumação da independência de todos os antigos territórios portugueses em África, cujos dirigentes se sintonizavam com a URSS e portanto lhe abriam a porta no confronto com o capitalismo e o “imperialismo dos EUA”, era já suficiente?
Mas Portugal, considerados especialmente os arquipélagos da Madeira e sobretudo os Açores, não era estrategicamente tão importante quanto a longínqua e isolada Cuba?
A alteração do cenário interno da URSS e do cenário internacional verificada desde a “crise dos mísseis” (Krutchev/Kennedy) terá sido indiferente para a atitude adoptada pelo PCP nesse “virar de página” da revolução portuguesa?
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